Há cinco séculos, os portugueses chegaram ao litoral brasileiro, dando início a um processo de migração que se estenderia até o início do século XX, e paulatinamente foram estabelecendo-se nas terras que eram ocupadas pelos povos indígenas.
O processo de colonização levou à extinção muitas sociedades indígenas que viviam no território dominado, seja pela ação das armas, seja em decorrência do contágio por doenças trazidas dos países distantes, ou, ainda, pela aplicação de políticas visando à “assimilação” dos índios à nova sociedade implantada, com forte influência européia.
Embora não se saiba exatamente quantas sociedades indígenas existiam no Brasil à época da chegada dos europeus, há estimativas sobre o número de habitantes nativos naquele tempo, que variam de 1 a 10 milhões de indivíduos.
Números que servem para dar uma idéia da imensa quantidade de pessoas e sociedades indígenas inteiras exterminadas ao longo desses 500 anos, como resultado de um processo de colonização baseado no uso da força, por meio das guerras e da política de assimilação. Hoje, no Brasil, vivem cerca de 345 mil índios, distribuídos entre 238 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,2% da população brasileira. Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão-somente aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além destes, há entre 300 e 500 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas.
A primeira expedição realizada na região do alto Rio Xingu ocorreu em 1884, chefiada pelo alemão Karl von den Steinen. Só na década de 1940, no governo do presidente Getúlio Vargas, a região começou a ser sistematicamente visitada e explorada. Foi organizada a Expedição Roncador-Xingu, que percorreu regiões inexploradas do Brasil central com o objetivo de desbravá-las, abrindo estradas e construindo campos de pouso de emergência. Como conseqüência da II Guerra Mundial, nacionalistas temiam que houvesse um deslocamento de colonos europeus para o interior do Brasil e a ação da Expedição visava à defesa da região.
Os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas foram membros da Expedição. Eles dedicaram-se ao contato amistoso e à proteção dos índios que viviam nas cabeceiras do Rio Xingu. Paulistas, oriundos de uma família de classe média, tinham um irmão mais novo, Álvaro, que, embora não os tenha acompanhado ao Xingu, foi funcionário do órgão indigenista oficial, chegando a ser presidente da Funai, na década de 1980.
Em 1944, a Expedição Roncador-Xingu contatou o povo Xavante, ainda hostil. Dois anos depois, estabeleceu contatos pacíficos com cerca de 14 povos do alto Xingu, de grande diversidade cultural, lingüisticamente representantes das Famílias Tupi, Aruak, Karib e Jê. Estes povos, que continuavam vivendo da mesma forma que Steinen os encontrara no século XIX, tinham sofrido um decréscimo populacional sensível, devido aos ataques violentos de gripe, disenteria e outras doenças infecciosas, que começaram a invadir a região cerca de 30 anos antes.
Teriam sido contagiados, aparentemente, porque alguns grupos de índios, deslocando-se pelos rios, haviam encontrado colonos brasileiros ao longo do Rio Paranatinga e em outros lugares.
Mantendo contato com Rondon e com outros indigenistas, os irmãos Villas Boas decidiram permanecer no Xingu e desenvolver aí um programa positivo de proteção aos índios, buscando assegurar-lhes uma base territorial onde pudessem manter seus modos tradicionais de organização social e de subsistência econômica, além de fornecer-lhes assistência médica contra doenças exógenas. Os irmãos defendiam a criação de reservas e parques indígenas fechados, que funcionassem como uma espécie de tampão protetor e seguro entre índios e sociedade brasileira. Eles achavam que o processo de integração dos povos indígenas na sociedade nacional deveria ser gradual, de forma a garantir a sobrevivência física, as identidades étnicas e os estilos de vida de cada um daqueles povos.
Em 1952, a questão foi levada a debate junto à Presidência da República e foi elaborado um documento legal solicitando a criação do Parque Nacional Indígena do Xingu, ocupando grande extensão de terras da parte setentrional do estado de Mato Grosso. Este seria o primeiro parque indígena do Brasil. Era visto como uma experiência incomparável de proteção aos povos indígenas e a seus habitats naturais contra os perigos representados por uma sociedade que estava vivendo um período de rápida e drástica transformação econômica e social.
Os irmãos Villas Boas foram nomeados para serem seus primeiros diretores, e o Parque foi colocado sob a responsabilidade conjunta do SPI, do Museu Nacional (RJ), do Instituto Oswaldo Cruz, do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq) e do Instituto Histórico e Geográfico do Mato Grosso.
Depois de sofrer sérias ameaças, entre elas uma tentativa do governo do Estado de Mato Grosso de fornecer concessões de terras do Parque a companhias e especuladores imobiliários, bem como uma epidemia de sarampo que quase dizimou toda a população da área, o Parque foi criado oficialmente em 19 de abril de 1961, quando o Congresso Nacional aprovou o Decreto nº 50.455, estabelecendo suas fronteiras legais. Em todo esse processo, a atuação dos irmãos Villas Boas junto à opinião pública e aos órgãos governamentais foi decisiva. Dessa forma, lograram conseguir que o governo brasileiro tomasse as medidas necessárias à retomada dos territórios irregularmente concedidos pelo governo do estado e ao combate à epidemia de sarampo e outras doenças que ameaçaram a população do Parque.
Durante vários anos os irmãos Villas Boas estiveram à frente do Parque Nacional do Xingu. Sua atuação teve muitos aspectos positivos e outros nem tanto. Organizaram um programa sistemático de saúde pública, vacinações e assistência médica para os índios, colocando sob controle quase todas as doenças epidêmicas e favorecendo o crescimento populacional.
Entretanto, ao fornecerem aos índios do Xingu uma ampla gama de ferramentas e de bens materiais, provocaram algumas mudanças nas relações, no interior das sociedades indígenas, entre elas havendo, por exemplo, um decreto.
O QUE É TERRA INDÍGENA
E, como bens públicos de uso especial, as terras indígenas, além de inalienáveis e indisponíveis, não podem ser objeto de utilização de qualquer espécie por outros que não os próprios índios.
POR QUE DEMARCAR?
O processo de demarcação é o meio administrativo para explicitar os limites do território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas. É dever da União Federal, que busca, com a demarcação das terras indígenas: a) resgatar uma dívida histórica com os primeiros habitantes destas terras; b) propiciar as condições fundamentais para a sobrevivência física e cultural desses povos; e c) preservar a diversidade cultural brasileira, tudo isto em cumprimento ao que é determinado pelo caput do artigo 231 da Constituição Federal. Sempre que uma comunidade indígena possuir direitos sobre uma determinada área, nos termos do § 1º do Artigo 231 da CF, o poder público terá a atribuição de identificá-la e delimitá-la, de realizar a demarcação física dos seus limites, de registrá-la em cartórios de registro de imóveis e protegê-la. Estes atos estão vinculados ao próprio caput do artigo 231 e, por isso mesmo, a União não pode deixar de promovê-los. As determinações legais existentes são, por si só, suficientes para garantir o reconhecimento dos direitos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, independentemente da sua demarcação física. Porém, a ação demarcatória é fundamental e urgente enquanto ato governamental de reconhecimento, visando a precisar a real extensão da posse indígena a fim de assegurar a proteção dos limites demarcados e permitir o encaminhamento da questão fundiária nacional.
A IMPORTÂNCIA DA DEMARCAÇÃO
A regularização das terras indígenas, por meio da demarcação, é de fundamental importância para a sobrevivência física e cultural dos vários povos indígenas que vivem no Brasil, por isso, esta tem sido a sua principal reivindicação. Sabe-se que assegurar o direito à terra para os índios significa não só assegurar sua subsistência, mas também garantir o espaço cultural necessário à atualização de suas tradições. Outro aspecto a ser mencionado, e que está em evidência nos dias atuais, é o fato de que a defesa dos territórios indígenas garante a preservação de um gigantesco patrimônio biológico e do conhecimento milenar detido pelas populações indígenas a respeito deste patrimônio. Por exemplo, as sociedades indígenas da Amazônia conhecem mais de 1.300 plantas portadoras de princípios ativos medicinais e pelo menos 90 delas já são utilizadas comercialmente. Cerca de 25% dos medicamentos utilizados nos Estados Unidos possuem substâncias ativas derivadas de plantas nativas das florestas tropicais. Por isso a preservação dos territórios indígenas é tão importante, tanto do ponto de vista de sua riqueza biológica quanto da riqueza cultural. Distribuídos por diversos pontos do País e vivendo nos mais diferenciados biomas – floresta tropical, cerrado etc. – os povos indígenas detêm um profundo conhecimento sobre seu meio ambiente e, graças às suas formas tradicionais de utilização dos recursos naturais, garantem tanto a manutenção de nascentes de rios como da flora e da fauna, que representam patrimônio inestimável.
A proteção das terras indígenas é, portanto, uma medida estratégica para o País, seja porque se assegura um direito dos índios, seja porque se garantem os meios de sua sobrevivência física e cultural, e ainda porque se garante a proteção da biodiversidade brasileira e do conhecimento que permite o seu uso racional.
A efetivação do direito territorial indígena e a preservação dessas populações em seus locais tradicionais tem sido, e continua sendo, nos tempos atuais, uma garantia da integridade dos limites territoriais brasileiros. É exemplo irrefutável a posição tomada pelos Kampa (ou Ashaninka) da TI Kampa do Rio Amônia – AC, os quais, mesmo se indispondo com os parentes do lado peruano, acionaram, no final do ano 2000, as autoridades brasileiras e deram todo o apoio possível à suspensão da retirada de madeira e abertura de mais uma rota ao trafico internacional de drogas em seu território.
SITUAÇÃO ATUAL
No final da década de 1970, a questão indígena passou a ser tema de relevância no âmbito da sociedade civil. Paralelamente os índios iniciaram os primeiros movimentos de organização própria, em busca da defesa de seus interesses e direitos. Diversas organizações indígenas e entidades de defesa de direitos promoveram amplo debate, visando a assegurar a demarcação das terras dos índios e a realizar reflexão crítica sobre a política de integração. Ao mesmo tempo em que estes se organizavam politicamente, no sentido de defender o direitos à posse das terras indígenas, passou-se a debater as bases de uma nova política indigenista, fundamentada no respeito às formas próprias de organização sociocultural dos povos indígenas.
As modificações significativas na maneira de encarar e tratar as sociedades indígenas, estabelecidas na Constituição Federal, foram portanto fruto do processo de redemocratização do País – na questão indígena, representado pelo movimento que visava a assegurar o direito à posse das terras indígenas e pela crítica à política de integração. Esses foram os fatos recentes que possibilitaram a aceleração dos trabalhos de demarcação e regularização das terras indígenas no Brasil.
O quadro legal específico e explícito, os procedimentos técnicos bem definidos e a parceria no processo demarcatório – seja com organismos governamentais nacionais e internacionais, não-governamentais ou com representantes das próprias comunidades indígenas interessadas – têm garantido maior legitimidade, consistência e celeridade aos trabalhos de demarcação das terras indígenas.
A superfície das 441 terras indígenas, cujos processos de demarcação estão minimamente na fase “identificadas”, é de 98.954.645 hectares, perfazendo 11,58% do total do território brasileiro. Outras 139 terras ainda estão por serem identificadas, não sendo suas possíveis superfícies somadas ao total indicado. Registra-se, ainda, que há várias referências a terras presumivelmente ocupadas por índios e que estão por serem pesquisadas, no sentido de se definir se são ou não indígenas.
Ainda que o processo de regularização das terras indígenas seja conhecido como demarcação, esta é apenas uma das fases administrativas do processo, conforme indicado no quadro ao lado.
As linhas-mestras do processo administrativo de demarcação das terras indígenas estão definidas na Lei nº 6.001, de 19/12/1973, que é conhecida como Estatuto do Índio, e no Decreto nº 1.775, de 08/01/1996. Esta legislação atribui à FUNAI o papel de tomar a iniciativa, orientar e executar a demarcação dessas terras, atividade que é executada pela Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF).
O procedimento atual para a identificação e delimitação, demarcação física, homologação e registro de terras indígenas está estabelecido e balizado no Decreto nº 1.775, de 8/01/1996, que “dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas”, definindo claramente o papel do órgão federal indigenista, as diferentes fases e sub-fases do processo, bem como assegurando transparência ao procedimento, por meio de sua publicidade.
Registra-se que o procedimento administrativo para a reserva de terras destinadas à proteção de grupos indígenas, prevista no art. 26 da Lei nº 6.001/73, conta com rito diferente do aplicado às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios estabelecido pelo Decreto nº 1.775/96.
Aquém e além desse processo, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, conta com duas outras atribuições, ditadas pelo Decreto nº 1.775/96, quanto à proteção das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas: a) o poder de disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas nas quais se constate a presença de índios isolados, ou que estejam sob grave ameaça; e b) a extrusão dos possíveis não-índios ocupantes das terras administrativamente reconhecidas como indígenas.
Os critérios para se identificar e delimitar uma terra indígena, o que é realizado por um grupo de técnicos especializados, estão definidos no Decreto nº 1775/96 e na Portaria nº 14/MJ, de 9/01/1996, a qual estabelece “regras sobre a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas”.
O início do processo demarcatório se dá por meio da identificação e delimitação, quando é constituído um grupo técnico de trabalho, composto por técnicos da FUNAI, do INCRA e/ou da secretaria estadual de terras da localização do imóvel. A comunidade indígena é envolvida diretamente em todas as sub-fases da identificação e delimitação da terra indígena a ser administrativamente reconhecida. O grupo de técnicos faz os estudos e levantamentos em campo, centros de documentação, órgãos fundiários municipais, estaduais e federais, e em cartórios de registro de imóveis, para a elaboração do relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área estudada, resultado que servirá de base a todos os passos subseqüentes. O resumo do relatório é publicado no Diário Oficial da União, diário oficial do estado federado de localização da área, sendo cópia da publicação afixada na sede municipal da comarca de situação da terra estudada.
Os estudos antropológicos e os complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário, realizados nesta fase, deverão caracterizar e fundamentar a terra como tradicionalmente ocupada pelos índios, conforme os preceitos constitucionais, e apresentar elementos visando à concretização das fases subseqüentes à regularização total da terra. É com base nestes estudos, que são aprovados pelo Presidente da FUNAI, que a área será declarada de ocupação tradicional do grupo indígena a que se refere, por ato do Ministro da Justiça – portaria declaratória publicada no Diário Oficial da União – reconhecendo-se, assim, formal e objetivamente, o direito originário indígena sobre uma determinada extensão do território brasileiro.
Desde o início do processo demarcatório até 90 dias da publicação do resumo do relatório nos Diários Oficiais da União e do Estado, podem os interessados apresentar contestações, as quais também serão analisadas pelo pessoal técnico da FUNAI, podendo o seu presidente optar pelo reestudo da área proposta ou pela sua confirmação, dando-se então continuidade ao procedimento.
Os estudos e pareceres referentes às contestações, ao serem aprovados pela FUNAI, são em seguida encaminhados para o Ministério da Justiça, que faz a análise da proposta apresentada pelo órgão indigenista, referente aos limites da terra indígena, e das razões apresentadas pelos contestantes.
Após a aprovação dos estudos feitos pela FUNAI por parte do Ministério da Justiça, a terra é declarada de ocupação tradicional do grupo indígena especificado, indicando a superfície, o perímetro e os seus limites, sendo inclusive determinada a sua demarcação física.
A demarcação física é a fase em que se materializam, em campo, os limites da terra indígena, conforme determinado na portaria declaratória expedida pelo Ministério da Justiça. Nesta fase, faz-se uma estimativa dos custos necessários à demarcação das terras declaradas, escolhe-se a modalidade de demarcação, executa-se a demarcação propriamente dita e também a fiscalização e recebimento dos serviços executados, conforme a seguir especificado:
I – As terras indígenas são limitadas por: 1) Acidentes naturais (rios, córregos, igarapés, lagos, orlas marítimas); 2) Estradas e 3) Linhas secas, assim denominadas onde o limite não é definido por acidentes geográficos ou estradas.
I.1 – Ao longo dos acidentes naturais não é executado trabalho de topografia, pois os limites já são claros e bem definidos em campo, sendo que, para a elaboração dos mapas, lançamos mão dos dados existentes nas cartas topográficas, com as devidas verificações em campo através de GPS de navegação.
I.2 – Ao longo de estradas, a demarcação é feita por meio de levantamento topográfico e geodésico e implantação de marcos e placas indicativas, sendo que geralmente não é necessária a abertura de picadas, pois estes limites também já estão materializados em campo.
I.3 – Ao longo das linhas secas, a demarcação é feita por meio de levantamento topográfico e geodésico e implantação de marcos e placas indicativas, sendo necessária a abertura de picadas com três metros de largura.
II – As placas indicativas são implantadas acompanhando os marcos e nos locais onde ocorrem vias de acesso à terra indígena.
III – Os marcos, confeccionados em concreto, são implantados ao longo das linhas secas num intervalo de, no máximo, 01 km e trazem, na sua parte superior, um pino de bronze com a inscrição Ministério da Justiça, FUNAI, número e tipo do marco, ano da demarcação e a observação “Protegido por Lei”.
IV – O resultado final da demarcação é apresentado em mapa e memorial descritivo, elaborados dentro das normas da cartografia internacional, apresentando limites que contam com coordenadas geográficas precisas.
V – Todos os trabalhos de demarcação são realizados de acordo com o Manual de Normas Técnicas para Demarcação de Terras Indígenas, da FUNAI.
VI – A Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF) da FUNAI, por meio do seu Departamento de Demarcação (DED), é responsável pela normatização, execução e fiscalização dos trabalhos de demarcação de terras indígenas no Brasil.
De posse do material técnico da demarcação, realiza-se a preparação da documentação para confirmação dos limites demarcados, que corresponde à homologação, o que se dá por meio da expedição de um decreto do Presidente da República.
O processo administrativo de regularização de uma terra indígena termina com o seu registro no Cartório Imobiliário da Comarca onde o imóvel está situado e na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) do Ministério da Fazenda.
Quando é constatada a presença de ocupantes não-índios na terra indígena, são realizadas, na fase de identificação e delimitação, levantamentos fundiários, socioeco-nômicos, documentais e cartoriais, bem como a avaliação das benfeitorias edificadas em tais ocupações.
Os estudos e levantamentos procedidos sobre as ocupações não-indígenas são analisados e julgada a boa fé quanto à implantação das mesmas, por meio da Comissão Permanente de Sindicância, instituída pelo Presidente da FUNAI, que divulga a decisão através de Resolução publicada no Diário Oficial da União. O pagamento das benfeitorias derivadas das ocupações de boa fé se dá com base em programação orçamentária disponibilizada para esta finalidade pela União.
Segundo o disposto no art. 4º do Decreto nº 1.775/96, os ocupantes não-indígenas retirados da terras indígenas têm prioridade no reassentamento fundiário feito pelo INCRA, observada a legislação pertinente.
O procedimento para a identificação e demarcação de terras indígenas tem procedimentos transparentes, todas as suas etapas são públicas. Publica-se no DOU a portaria de constituição do grupo técnico encarregado dos estudos de identificação e delimitação; o resumo do relatório caracterizando a terra indígena a ser demarcada é publicado no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, além do que a publicação é afixada na sede da Prefeitura Municipal em que se situa o imóvel, conforme determina o parágrafo 7º do artigo 2º do Decreto nº 1.775/96; a portaria declaratória do MJ e o decreto homologatório do Presidente da República são publicados no DOU.
Somado a isso, o citado Decreto nº 1.775/96, no parágrafo 8º do artigo 2º, assegura aos estados e municípios em que se localize a área em demarcação, e aos demais interessados, manifestar-se, seja para pleitear indenizações ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório, pelo período que vai do início da demarcação até noventa dias após a mencionada publicação, o que, por assegurar transparência ao processo e permitir o contestatório, levou o atual governo a revogar o Decreto nº 22, de 04/02/1991, substituindo-o pelo Decreto nº 1.775/9.
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NÃO BASTA SÓ DEMARCAR
A demarcação administrativa é apenas a primeira medida visando à proteção das terras indígenas. Concluído este processo, são necessárias outras ações, visando tanto a prevenir como a sanar as situações de exploração econômica indevida e a reintegração de posse de territórios pelos índios. Além disso, existem as questões que envolvem a proteção dos bens culturais e que se referem à valorização da identidade étnica, sem o que não é possível assegurar a cidadania para os índios. É preciso, depois de demarcadas e garantidas as terras, assegurar, para cada povo ou comunidade que habite uma terra indígena, um processo próprio de desenvolvimento, adequado à realidade e ao anseio deste povo ou comunidade. Quanto ao dever do Estado, ele tem a função de facilitar, fomentar e possibilitar que esta escolha torne-se uma realidade, constituindo este o grande desafio que a FUNAI hoje tem pela frente. Nesse sentido, uma das necessidades referentes à reestruturação do órgão indigenista é justamente essa, ou seja, viabilizar a substituição do velho modelo de indigenismo, caracterizado pelo paternalismo e clientelismo, e no qual os índios são tratados como uma realidade genérica (índio genérico) e em vias de desaparecimento, por um novo indigenismo, em que as diferentes realidades sejam contempladas por diferentes formas de planejamento e experiências indigenistas.
Assim, as ações do órgão indigenista voltadas para assegurar os direitos dos índios estão sendo repensadas, no sentido de que sua concepção, planejamento e execução tenham em vista sociedades diferenciadas da nacional, bem como diferentes entre si, pois na questão da especificidade dos programas e projetos destinados a estes povos e comunidades é vital a concretização de políticas regionalizadas.
Outro desafio é assegurar a participação das populações indígenas, sem o que não é possível garantir a manutenção dos territórios já regularizados, pois só por meio de um processo de conscientização a respeito de seus direitos e por intermédio de medidas de caráter preventivo é que serão criados os meios para que possam ser evitadas novas invasões e explorações indevidas de suas terras.
Por muito tempo se quis impedir ou protelar a demarcação das terras indígenas, com a desculpa de que se estaria pondo em risco a segurança nacional, tese que acabou sendo desmentida com o tempo, pois, ao contrário, o avanço nas medidas de regularização destas terras serviu para assegurar o direito dos índios, para pôr fim a conflitos pela posse da terra, os quais muitas vezes se estendiam por décadas, e para garantir a integridade territorial brasileira. É preciso lembrar que as terras indígenas são patrimônio da União, diversamente da grande quantidade de terras de particulares que estão sendo transferidas para estrangeiros, a exemplo das madeireiras asiáticas.
Mais recentemente, alguns segmentos da população brasileira contrários aos direitos indígenas passaram a afirmar que os índios teriam “terras demais”. Este argumento serve para confundir a opinião pública e reforçar o conflito com a enorme legião de trabalhadores rurais sem terras existente no Brasil.
Acresce-se que as terras devolutas e ocupadas nos padrões dos não-índios são mais do que suficientes para a produção de alimentos requeridos pelo País.
A idéia que se procura propagar com esse tipo de argumentação é a de que, com a regularização das terras indígenas, estaria-se reduzindo a quantidade de terras disponíveis para a agricultura e outras atividades econômicas, resultando em escassez de terras para os trabalhadores rurais não-indígenas. Por trás deste argumento agrega-se a crença de que as terras indígenas são improdutivas, o que já está há muito desmentido. Registra-se como exemplo que, sendo paralisada a produção indígena, no mercado local da Amazônia Legal haverá, indubitavelmente, fome, mesmo que haja disponibilidade de abastecimento vindo de fora da área. Os custos estariam fora da capacidade financeira da população e as vias de acesso são um empecilho ao pronto abastecimento.
Além disso, estatísticas elaboradas pelo Incra mostraram claramente que, somando-se as terras aproveitáveis e não-exploradas existentes em todos os estados do Brasil, atingiu-se um total de 185 milhões de hectares, o que corresponde, aproximadamente, ao dobro de todas as terras indígenas.
Logo, é a extrema concentração da propriedade fundiária em mãos de poucos membros da sociedade brasileira e sua má ou falta de utilização que levam a larga margem da população rural a não dispor de terras para trabalhar, e não a grande extensão dos territórios indígenas.
Além disso, o montante dos imóveis rurais cadastrados pelo Incra corresponde a menos de 70% do território nacional, havendo, ainda, 255 milhões de hectares de terras não-discriminados ou cadastrados pelo órgão fundiário. Isto significa que, mesmo ressalvando-se as áreas urbanas e aquelas destinadas à proteção ambiental, ao uso das forças armadas etc., resta muita terra para a expansão das atividades econômicas, sem que seja necessário proceder à invasão do habitat das populações indígenas.
Assim, o reconhecimento dos limites das terras dos índios não inviabiliza o desenvolvimento do meio rural. Sobre isto existem dados, segundo os quais “as terras indígenas não obstaculizam a expansão das atividades agrícolas ou pecuárias, uma vez que as terras indígenas constituem parte menor do estoque de terras que poderia ser destinado a programas governamentais de colonização e/ou reforma agrária” (OLIVEIRA, João Pacheco: Terras Indígenas no Brasil, CEDI/Museu Nacional, 1987).
MARECHAL RONDON
Cândido Mariano da Silva era descendente de índios Terena, Borôro e Guaná. Ele nasceu em 5 de maio de 1865, numa cidadezinha de Mato Grosso chamada Mimoso, mas que hoje é Santo Antônio do Leverger. Perdeu os pais ainda menino e foi criado por um tio, cujo sobrenome – Rondon – Cândido Mariano adotou anos mais tarde, com autorização do Ministério da Guerra.
O jovem Cândido Mariano licenciou-se como professor primário pelo Liceu Cuiabano, de Cuiabá, antes de continuar seus estudos no Rio de Janeiro. Em 1881, entrou para o Exército e dois anos depois para a Escola Militar da Praia Vermelha. Em 1886 ele foi encaminhado à Escola Superior de Guerra e assumiu um papel ativo no movimento pela proclamação da República. Por meio de exames prestados em 1890, graduou-se como bacharel em Matemática e em Ciências Físicas e Naturais. Foi aluno de Benjamim Constant, e a ideologia positivista o guiou por toda a sua vida. Em 1889, Cândido Mariano foi nomeado ajudante da Comissão de Construção das Linhas Telegráficas de Cuiabá a Registro do Araguaia, que era chefiada pelo coronel Gomes Carneiro. Por sua indicação, Rondon veio a assumir a chefia do distrito telegráfico de Mato Grosso, em 1892. Desde então, chefiou várias comissões para instalar linhas telegráficas no interior do Brasil, identificadas, genericamente, pelo nome de Comissão de Construção de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, mais conhecida como Comissão Rondon.
Ele se destacou pela instalação de milhares de quilômetros de linhas telegráficas interligando as linhas já existentes no Rio de Janeiro, São Paulo e Triângulo Mineiro com os pontos mais distantes do País. Um esforço de grandes proporções para a integração nacional através das comunicações. Ao mesmo tempo em que realizava o trabalho, Rondon fez levantamentos cartográficos, topográficos, zoológicos, botânicos, etnográficos e lingüísticos da região percorrida nos trabalhos de construção das linhas telegráficas. Registrou novos rios, corrigiu o traçado de outros no mapa brasileiro e ainda entrou em contato com numerosas sociedades indígenas, sempre de forma pacífica. Pela sua vasta contribuição ao conhecimento científico, foi alvo de homenagens e recebeu muitas condecorações de instituições científicas do Brasil e do exterior.
A repercussão da obra indigenista de Rondon valeu-lhe o convite feito pelo governo brasileiro para ser o primeiro diretor do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPI), criado em 1910. Nesta função, comandou e traçou o roteiro da expedição que o ex-presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, Prêmio Nobel da Paz em 1906, realizou pelo interior brasileiro entre 1913 e 1914, a Expedição Roosevelt-Rondon.
Também publicou o livro Índios do Brasil, em três volumes, editado pelo Ministério da Agricultura. Incansável defensor dos povos indígenas do Brasil, ficou famosa a sua frase: “Morrer, se preciso for; matar, nunca.”
Entre 1919 e 1925, foi diretor de Engenharia do Exército e, após sucessivas promoções por merecimento, chegou a general-de-brigada em 1919 e a general-de-divisão em 1923.
A Inspeção de Fronteiras foi criada em 1927 para realizar o estudo das condições de povoamento e segurança das fronteiras brasileiras. Rondon ficou responsável por sua organização e chefia. Assim, ele percorreu milhares de quilômetros, do extremo norte do País ao Rio Grande do Sul, a fim de inspecionar pessoalmente as fronteiras.
Em 1930, solicitou sua passagem para a reserva de primeira classe do Exército e, em 1940, foi nomeado presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), criado para prestar orientação e fiscalizar a ação assistencial do SPI, cargo em que permaneceu por vários anos. Encaminhou ao presidente da República, em 1952, o Projeto de Lei de criação do Parque Indígena do Xingu.
Em 1955, o Congresso Nacional conferiu-lhe a patente de marechal. Já cego, faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de janeiro de 1958, com quase 93 anos.
Ao longo de sua vida e postumamente, pelo conjunto de sua obra, Rondon recebeu as maiores condecorações civis e militares, brasileiras e estrangeiras, entre elas o Prêmio Livingstone, da Sociedade Geográfica de Nova York/EUA; a inscrição de seu nome em letras de ouro, na mesma Sociedade, por ter sido considerado o explorador que mais se destacou em terras tropicais; a indicação de 15 países para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz, em 1957; a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Militar; os títulos de “Civilizador dos Sertões” e “Patrono das Comunicações no Brasil”.
Para homenagear Rondon, foi escolhido o dia 5 de maio, sua data natalícia, para a comemoração do Dia Nacional das Comunicações. O antigo Território Federal de Guaporé recebeu o nome de Rondônia também em sua homenagem.
DARCY RIBEIRO
Darcy Ribeiro nasceu em 26 de outubro de 1922, no município de Montes Claros, Minas Gerais. Perdeu o pai muito cedo e sua mãe era professora primária. Em 1939, foi para Belo Horizonte, para estudar medicina. Lia muito e preferia assistir às aulas dos cursos da Faculdade de Filosofia e da Faculdade de Direito, acabando por ser reprovado duas vezes na Faculdade de Medicina. Em 1943, escreveu seu primeiro romance, Lapa Grande. Um ano depois, Darcy Ribeiro matriculou-se na Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, a convite do professor americano Donald Pierson. Em 1946, graduou-se em Sociologia, com especialização em Etnologia, sob a orientação do professor alemão Herbert Baldus. Comunista desde 1940, integrou-se rapidamente num grupo intelectual paulista, do qual faziam parte, entre outros, Caio Prado Júnior, Oswald de Andrade e Jorge Amado. Em 1947, Darcy foi contratado para trabalhar na Seção de Estudos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), casando-se com Bertha Gleiser no ano seguinte.
No SPI, fez diversas viagens de pesquisa de campo, dedicando-se a estudar os índios Kadiwéu e os Urubus-Kaapor, além de ter visitado aldeias dos Terena, Kaiwá e Ofaié-Xavante e de ter feito viagem de estudos ao Xingu. Em 1952, foi à Bolívia e ao Peru, detendo-se na observação dos povos Quíchua e Aimará. No mesmo ano, organizou o Museu do Índio, inaugurado oficialmente em abril de 1953. Junto com o cineasta alemão Heinz Foerthmann, também funcionário do SPI, realizou o filme “Funeral Bororo”, documentando o sepultamento de Cadete, cacique daquele povo, em 1953.
Em 1954, Darcy Ribeiro colaborou com Jaime Cortesão na organização da parte indígena da “Grande Exposição de História do Brasil”, montada em um edifício especialmente construído para ela, por Oscar Niemeyer, no conjunto do Ibirapuera, por ocasião das comemorações do IV Centenário de São Paulo. No mesmo ano ele fez sua primeira viagem à Europa, a convite da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Em 1955, com o auxílio do prof. Eduardo Galvão e com patrocínio da Capes, Darcy Ribeiro organizou no Museu do Índio o primeiro Curso de Pós-Graduação em Antropologia Cultural realizado no Brasil, que veio a formar muitos pesquisadores destacados. Também assumiu a cadeira de Etnografia Brasileira e Língua Tupi da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. No ano seguinte, integrou uma equipe organizada pela Unesco para estudar as relações inter-raciais no Brasil e, devido a uma crise no SPI, acabou sendo demitido da instituição, em 1957.
No mesmo ano, foi contratado por Anísio Teixeira para dirigir a Divisão de Estudos Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), do Ministério da Educação e Cultura. Ele levou para lá o Curso de Pós-Graduação que organizara no Museu do Índio, ampliando-o na área de Sociologia.
Em 1959, Darcy assumiu o cargo de vice-diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, como principal colaborador do prof. Anísio Teixeira. No mesmo ano foi eleito presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e também planejou e dirigiu, no CBPE, um ambicioso Programa de Pesquisas Socioantropológicas.
Embora fosse inicialmente contrário à construção de Brasília, acabou aderindo ao projeto e foi encarregado, pelo presidente Juscelino Kubitschek, do planejamento da Universidade de Brasília. Ele recebeu contribuições de Anísio Teixeira e de Oscar Niemeyer, bem como de muitos cientistas ligados à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A pedido do presidente Jânio Quadros, colaborou com Anísio Teixeira na elaboração de um Plano Nacional de Educação, em 1961, e no mesmo ano assumiu a Reitoria da Universidade de Brasília, empossado pelo presidente João Goulart.
Em 1962, tornou-se ministro da Educação e Cultura, elaborou o documento de sanção presidencial da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e colocou em execução o primeiro Plano Nacional de Educação, além de ter sido eleito presidente do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Em 1963, foi nomeado chefe da Casa Civil do presidente João Goulart, exercendo o cargo até o golpe Militar de 31 de março de 1964. Então exilou-se em Montevidéu, onde foi contratado como professor de Antropologia da Faculdade de Humanidades e Ciências da Universidade da República Oriental do Uruguai.
Em 1968, anulados pelo Supremo Tribunal Federal os diversos processos que lhe haviam sido impostos pela ditadura militar, em face do movimento de redemocratização que tinha lugar no Brasil, Darcy Ribeiro retornou ao país, mas a promulgação do Ato Institucional nº 5 levou-o à prisão preventiva durante nove meses. Em 1969, foi julgado por um tribunal militar e considerado pessoa da mais alta periculosidade. Mas acabou sendo absolvido por falta de provas. Em seguida, sentindo-se pressionado pelo Exército, exilou-se na Venezuela, onde trabalhou como professor da Universidad Central de la República. Viajou por diversos países, participando de seminários e grupos de estudos, fazendo palestras, dando cursos e desenvolvendo atividades afins. Dessa forma, esteve no Peru, na Colômbia, na Argentina, na Argélia e na França.
Em 1971, mudou-se para o Chile, a convite do presidente Salvador Allende, e assumiu o cargo de professor pesquisador do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, em Santiago.
Em 1972, transferiu-se para o Peru, sendo contratado pela OIT, através do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, para implantar, em Lima, o Centro de Estudos da Participação Popular (Centro). Também continuou viajando para participar de congressos, conferências etc., visitando o México, o Equador e Portugal.
Em 1974, Darcy descobriu ter um câncer pulmonar, foi a Paris para exames e conseguiu voltar ao Brasil, depois de muitas conversações com o governo militar. Depois de um cirurgia, foi considerado curado. Compelido pela ditadura militar a deixar o Brasil novamente, no ano seguinte voltou a Lima e reassumiu a direção do Centro. No mesmo período elaborou um plano para a implantação de uma Universidade do Terceiro Mundo, a pedido do presidente Echeverría, do México, que resultou no Centro de Estudos do Terceiro Mundo.
Em 1976, voltou ao Brasil e fixou-se no Rio de Janeiro, viajando com freqüência, para participar de conferências, reuniões científicas e simpósios no Brasil e no exterior.
Já separado da primeira esposa há anos, casou-se com Cláudia Zarvos em 1978, ano em que participou ativamente da campanha contra a falsa emancipação dos índios pretendida pelo governo militar, mobilizando universidades, imprensa e lideranças indígenas.
Anistiado, por lei, em 1979, retomou seu cargo de professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de ter recebido, na França, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Paris, no salão nobre da Sorbonne. No mesmo ano, aliou-se a Leonel Brizola para reorganizar o antigo Partido Trabalhista Brasileiro, cujo registro foi negado pelo governo, no ano seguinte, o que os levou à criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Ainda em 1980, foi membro do júri do 4º Tribunal Russel, reunido na Holanda, para julgar crimes contra populações indígenas, integrou a Comissão de Educadores, convocada pela Unesco, que se reuniu em Paris para definir as futuras linhas de desenvolvimento da cultura e da educação no mundo, e planejou a estruturação da nova Universidad Nacional de Costa Rica.
Em 1981, integrou a diretoria do Instituto Latinoamericano de Estudos Transnacionais (Ilet), sediado no México. No ano seguinte, foi eleito vice-governador do estado do Rio de Janeiro, com o governador Leonel Brizola. Também continuou participando de conferências e reuniões científicas em várias partes do mundo, visitando os Estados Unidos, a Espanha, a Itália e a Alemanha, entre outros países.
No Rio de Janeiro, como secretário de Estado de Cultura e cordenador do Programa Especial de Educação, cargos assumidos em 1983, foi o responsável pela construção do Sambódromo, com 200 salas de aula debaixo de suas arquibancadas, pela construção do Monumento a Zumbi dos Palmares, pela implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), pela construção da Biblioteca Pública Estadual do Rio de Janeiro e pela implantação das Casas da Criança (creches de horário integral). Darcy Ribeiro também organizou o Centro Infantil de Cultura do Rio, um modelo integrado de animação cultural, aberto a centenas de crianças faveladas, e, com a colaboração de João Filgueiras Lima, implantou a Fábrica de Escolas, que visava a acabar com a necessidade do terceiro turno escolar.
Em colaboração com Tatiana Memória, criou um novo modelo de instituição assistencial para crianças, as Casas Comunitárias.
Em 1986, foi candidato a governador do estado do Rio de Janeiro e reintegrou-se ao corpo de Pesquisadores Seniores do CNPq, tendo recebido homenagens da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro e da Assembléia Legislativa do mesmo estado.
Em 1987, assumiu o cargo de secretário de Desenvolvimento Social do Estado de Minas Gerais e elaborou, a convite do governador Orestes Quércia, de São Paulo, o programa cultural do Memorial da América Latina, cuja arquitetura foi assinada por Oscar Niemeyer. Para orientar e contratar a compra de coleções de obras de arte, livros, discos e filmes, que constituiriam o acervo do Memorial, esteve em Cuba, México, Guatemala, Peru, Equador e Argentina.
Por ocasião da comemoração dos 30 anos da Casa das Américas e da Revolução Cubana, foi condecorado por Fidel Castro com a medalha Haydée Santamaria, em 1989. Na mesma época, empenhou-se na campanha eleitoral de Brizola, então candidato à Presidência da República, e foi reincorporado ao corpo docente da Universidade de Brasília. Ainda naquele ano, recebeu os títulos de Professor Emérito do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e de Presidente Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
No exercício de seu mandato como senador, publicou, em 1991, a revista informativa Carta. Naquele mesmo ano, assumiu a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais, no estado do Rio de Janeiro, retomando a implantação do Programa Especial de Educação para preparar 30 mil professores, através de cursos de treinamento intensivo, a fim de desenvolver trabalhos em 500 Centros Integrados de Educação Pública (Cieps) e em 400 Centros Integrados de Assistência à Criança (Ciacs).
Em 1992, assumiu a responsabilidade de criar a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), apresentou ao Senado Federal o novo Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras e implantou um Centro de Teleducação na Secretaria Extraordinária de Programas Especiais. O Centro passou a produzir e emitir programação educativa para todas as unidades escolares do estado do Rio de Janeiro, assim como para outros estados, com transmissões via satélite. Logo no ano seguinte, tomou posse na Academia, vindo a ocupar a cadeira 11.
No período que se seguiu, dedicou-se ao Ensino a Distância e à elaboração de vasto material educativo, para capacitação de professores e apoio aos alunos em sala de aula, elaborado dentro de uma orientação construtivista. O vasto material didático produzido foi utilizado em toda a rede pública de ensino do estado do Rio de Janeiro e em outros estados também. A partir de agosto de 1995, passou a ser articulista do jornal Folha de S. Paulo.
Naquele mesmo ano, o reitor da Universidade de Brasília, João Carlos Todorov, outorgou-lhe o título de Doutor Honoris Causa, e seu nome foi dado ao Campus da mesma Universidade. Ainda recebeu o Prêmio Interamericano de Educação “Andrés Bello”, concedido pela Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Darcy Ribeiro faleceu em Brasília, em 17 de fevereiro de 1997, tendo sido sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. Após seu falecimento, a Fundação Darcy Ribeiro (Fundar) tornou-se responsável pelo seu acervo e pela preservação de sua memória.
Ainda em vida, ele recebeu diversos outros prêmios, títulos e condecorações de instituições nacionais e estrangeiras, além dos já citados. Como pesquisador, educador e escritor, deixou vastíssima obra publicada, não só em português, como em várias outras línguas. Escreveu romances, livros relativos a estudos antropológicos, livros referentes à educação, outros sobre estudos diversos e ainda um de literatura infanto-juvenil. Além disso, prefaciou vários outros livros e elaborou dezenas de artigos e textos diversos, bem como projetos, participando, também, de três documentários cinematográficos.
De personalidade controvertida, Darcy Ribeiro foi cientista e educador antes de entrar para o mundo da política e possivelmente estão nessas áreas suas contribuições mais indiscutíveis e relevantes para o Brasil.
NOEL NUTELS
Como médico da Expedição Roncador-Xingu, conviveu com os irmãos Villas Boas e, mais tarde, com eles e com Darcy Ribeiro, participou do grupo que veio a criar o Parque Nacional do Xingu.
Diante do surto de sarampo ocorrido no Parque, em 1954, os irmãos Villas Boas, seus dirigentes, mobilizaram o apoio de um grupo de médicos da Escola de Medicina de São Paulo e de uma equipe de funcionários da saúde pública associados a Noel Nutels no Rio de Janeiro.
Esse pessoal médico, em associação com a Força Aérea Brasileira, levou imediatamente ajuda à região e conseguiu interromper a epidemia de sarampo antes que ela destruísse toda a população do alto Xingu.
Com essa experiência, Nutels criou e desenvolveu um trabalho de atendimento médico às populações indígenas e interioranas – o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (Susa), que atuou de 1956 a 1973.
Durante seus trabalhos junto aos índios, realizou filmagens com sua câmera 16mm, tanto em preto-e-branco como em cores, que constituíram 34 filmes, totalizando aproximadamente cinco horas de documentário.
Como indigenista, cientista e médico de massas, foi levado ao pioneirismo em muitos campos pela necessidade de suprir, contornar e/ou superar as deficiências que encontrava.
Noel Nutels deixou grande número de trabalhos científicos publicados e durante toda a sua vida participou ativamente de congressos, reuniões e debates referentes às suas áreas de especialidade. Foi professor de cursos especializados e realizou numerosas conferências, no Brasil e no exterior (na França, Itália, URSS, etc.).
Sempre buscando a atualização e o aperfeiçoamento profissional, fez diversos cursos de especialização em alimentação, nutrição e dietética, malária, tisiologia clínica sanitária e social, radiologia clínica pulmonar e saúde pública, entre outros.
Em 1963 ele foi nomeado diretor do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e, em 1968, membro do Conselho Diretor da Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 1972, tornou-se conselheiro científico da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso.
Noel Nutels faleceu no Rio de Janeiro, em 10 de fevereiro de 1973.
CURT NIMUENDAJÚ
O Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú é um instrumento de consulta dos mais importantes para os pesquisadores que trabalham com os índios do Brasil. Ele foi editado no Rio de Janeiro, pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em colaboração com a Fundação Nacional Pró-Memória/Secretaria de Planejamento da Presidência da República, em 1981.
O mapa é formado por dois volumes: um deles contém índices das sociedades indígenas, bibliográfico e de autores, bem como textos de esclarecimento a respeito da ortografia dos nomes tribais e de outros assuntos de interesse. O outro, sob a forma de encarte, é o mapa propriamente dito, que mostra a localização das sociedades indígenas no território brasileiro em diferentes épocas, traçando, em alguns casos, possíveis rotas de migração e assinalando a filiação lingüística das diversas sociedades.
O autor do mapa foi Curt Unkel, um alemão nascido em Jena, em 1883, e que muito cedo saiu de sua terra natal para viajar. Chegou ao Brasil em 1903, onde se fixou em São Paulo, até 1913, e depois em Belém. Ele era um autodidata e nunca realizou estudos universitários. Curt viajou muito em terras brasileiras e conviveu durante 40 anos com diferentes sociedades indígenas, sempre escrevendo e fazendo anotações em alemão.
Curt recebeu o nome Nimuendajú dos Guarani, com quem viveu durante a primeira década do século XX, submetendo-se a uma cerimônia de batismo presidida por um pajé. O nome significa “o ser que cria ou faz o seu próprio lar”. Acabou por adotar o novo nome e passou a assiná-lo.
Curt Nimuendajú trabalhou e realizou pesquisas para o Museu do Ipiranga (São Paulo), Serviço de Proteção aos Índios (no qual ingressou em 1911), Museu Nacional (Rio de Janeiro), Museu Paulista (São Paulo), Museu Paranaense (Curitiba), Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém) e para diversos museus e universidades do exterior. Fez escavações arqueológicas, coletou material lingüístico e objetos da cultura material dos povos com quem conviveu, realizou estudos etnológicos, fez levantamentos geográficos, desenvolveu trabalhos topográficos e cartográficos, registrou a música indígena, sempre ilustrando suas anotações com seus desenhos a bico de pena.
Ele produziu uma obra vastíssima, muita coisa editada em línguas estrangeiras, e morreu em circunstâncias cercadas de mistério, durante mais uma de suas viagens de pesquisa de campo, provavelmente em 1945, no estado do Amazonas. Seu espólio científico (biblioteca, arquivo) foi adquirido pelo Museu Nacional.
IRMÃOS VILLAS BOAS
Há também indícios da existência de mais ou menos 53 grupos ainda não-contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista.
Os índios sobrevivem. Não apenas biologicamente, mas também do ponto de vista das tradições culturais, segundo comprovam estudos recentes, os quais demonstram que a população indígena vem aumentando rapidamente nas últimas décadas. Hoje, as 215 diferentes sociedades somam cerca de 358 mil pessoas, que falam 180 línguas distintas. Os índios vivem nos mais diversos pontos do território brasileiro e representam, em termos demográficos, um pequeno percentual da população de 150 milhões de habitantes do Brasil. Todavia são um exemplo concreto e significativo da grande diversidade cultural existente no País.
Os seus antepassados contribuíram com muitos aspectos de suas diversificadas culturas para a formação do que atualmente se chama Brasil: um país de vasta extensão territorial, cuja população é formada pelos descendentes de europeus, negros, índios e, mais recentemente, também de imigrantes vindos de países asiáticos, que mesclaram suas diferentes línguas, religiões e tradições culturais em geral, propiciando a formação de uma nova cultura, fortemente marcada por contrastes.
Mais da metade da população indígena está localizada nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, principalmente na área da Amazônia Legal. Mas há índios vivendo em todas as regiões brasileiras, em maior ou menor número, com exceção dos estados do Piauí e Rio Grande do Norte.
Mesmo no Piauí, existem grupos de pessoas que vivem no interior do estado as quais vêm se auto-identificando como indígenas e começam a reivindicar o reconhecimento como indígenas junto à FUNAI.